Como era previsível, com a coisa a começar a apertar, o governo vai ficar sozinho na aplicação da pudibunda austeridade. É agora muito fácil estar do lado do povo, do lado dos que perdem direitos adquiridos, do lado dos que vão sofrer. A falta de dinheiro é uma ideologia unificadora.
Uma amnésia, insidiosa como um nevoeiro outonal, desceu sobre o nosso passado recente. Ninguém se lembra de como chegámos aqui, por exemplo, BMW's X3 para os vogais da administração de um metro de superfície regional.
Uma amnésia, insidiosa como um nevoeiro outonal, desceu sobre o nosso passado recente. Ninguém se lembra de como chegámos aqui, por exemplo, BMW's X3 para os vogais da administração de um metro de superfície regional.
Em Tsavo, quando ainda havia muitos trabalhadores na construção da linha do Lunatic Express, os ataques dos leões eram encarados com relativa indiferença. Quando ficaram apenas umas centenas, o caldo entornou. Serve isto para recordar a maravilhosa natureza humana: a batata quente é para os outros.
Fernando Medina, ( alguém que se sabe exprimir), do PS, falava no outro dia, na AR, da coesão social necessária para fazer o que tem de ser feito. Friamente, o que o governo está a fazer é emagrecer uma máquina pública pleonexica. Podia tudo ser diferente se fossemos diferente do que somos? Podia, claro, mas somos - temos sido - o que somos. A coesão social, a fuga à fractura, só se alcançará com uma atitude decente.
Uma atitude decente é assumirmos todos as nossas responsabilidades*. Não tenho ilusões: quem está de fora ( a esquerda parlamentar) vai comportar-se como se tivesse chegado agora de Madagáscar; senadores e oportunistas vão comportar-se como sempre se têm comportado- cuidando dos seus interesses pessoais em nome "do povo". Os revolucionários quererão fazer o que sabem fazer: escolher pelos outros.
Escolher um lado não significa escolher uma facção. Significa não fazer a escolha fácil, a que as circunstâncias sugerem como melhor para o nosso futuro individual. Escolher um lado significa ter dúvidas e esperar que essa escolha as possa resolver - o contrário é o fanatismo egoísta.
Na perigosa situação actual, como não sei o que o governo poderia estar a fazer de diferente, escolho o lado da opção actual. Não é o lado do partido ou do governo, é o lado da decência.
* Ao contrário disto
* Ao contrário disto
13 comentários:
Caro Vicente
Sempre gostei de quantificadores universais quando se trata de perceber as causas e as razões da desgraça.
Eu cá sou - tenho sido - o que sou e não me lembro de ter recebido um BMW's X3.
Paulo Ferreira
Tenho a certeza de que vc alcança o interesse retórico de um exemplo prático. Ou queria a lista completa?
O meu lado é também o lado dos que são capazes de enfrentar as dificuldades porque aceitam a realidade e não dos que não as podem combater porque não a aceitam (à realidade).
Se dois contendores políticos aceitarem a realidade e se proposerem a resolver os problemas de formas distintas, escuto ambos com atenção.
Se apenas um deles é capaz de lidar com a realidade, este terá o meu apoio (por muitos espinhos e faltas de lógica de algumas actuações)
Eu gosto de listas, caro Vicente. Não gosto é do quantificador universal "todos" em expressões aguadas como "assumirmos TODOS as nossas responsabilidades", que, em Portugal, é o useiro e vezeiro topos retórico da impunidade . E já agora, nessa lista, para além de todos os que receberam BMW's X3, poderiam constar os nomes dos que, suspeitamente, sabem demasiado bem as respostas às consabidas questões:
- Porque devemos e porque nos endividámos?
- A quem e quanto devemos?
- Que juros comportam as abnegadas «ajudas» que nos prometem a salvação?
Quanto representam no total da dívida?
- Que parte deve afinal ser imputada aos serviços públicos?
Naturalmente, para a maior parte dos portugueses, estas perguntas não são retóricas.
Paulo Ferreira
Caro Paulo Ferreira,
LOgo vi que vc estava a falar de outra coisa.
"Assumirmos todos as nossas responsabilidades não se refere ao passado", não sou fadista.
Refiro-me ao presente, estamos todos no mesmo barco, pese alguns não quererem compreender isso.
Isto mesmo.
Aplaudo em pe'. Desculpe o anonimato, mas nao consigo comentar com outro perfil. AL
Filipe, o que tem a ver ficar ao lado dos que mais sofrem, com os BMW? Eu não acho que seja fácil ficar ao lado dos que mais sofrem, acho que é a posição certa, sempre pensei assim. Também estou a empobrecer e não me calo, só por causa desses tais vogais de um metro. Eu não percebo a politica do actual governo e gostava que o FNV me explicasse. Não estou sozinho, um nobel da economia, o Paul Krugman, também não percebe estas politicas. Ou o Vitor Gaspar é mais inteligente do que ele, ou estamos feitos.
Vítor,
Já expliquei que esse exemplo é uma condensação e nem é o essencial.
Esqueçamos isso. Analisemos o que há e responda-me: o que faria diferente?
A falta de sentido colectivo vai fazer-se notar na pior das alturas.
Filipe, eu não sou governante, mas a solução não deve ser empobrecer. Como é que um pais cresce, empobrecendo a população? O governo tem feito passar a ideia de que tem a única solução. Mas se sempre discutimos as politicas dos governos, porque é que se dá esta como certa como se fosse a Bíblia? Porque é que em vez de se reduzir os ordenados e cortar subsídios a quem ganha a fortuna de mil euros, não se taxam os mais ricos? Antigamente, havia um preconceito contra os ricos, agora é o contrário, parece que os temos de proteger e quem diz o contrário é um perigoso comunista. Eu ganho mil e duzentos euros e sempre fiz uma vida simples, não estive à espera dos cortes para deixar de ir ao cinema ou frequentar restaurantes todas as semanas, já há muito que só compro roupa nas feiras de ciganos, etc, mas dizem-me a mim que sou um privilegiado e se digo que sou funcionário público, insultam-me. Só neste país. Muitos, só ficarão satisfeitos, e até lançarão foguetes, se eu for despedido.
Vítor, tanto quanto sei, os cortes salariais, por exemplo, foram escalonados.Não foram iguais para quem ganha mil ou cinco mil, certo?
Pode-se ir mais longe? Talvez. Há muito para fazer em sede da tal coesão. Aliás, hei-de recordar o que escrevi na altura da antecipação dos dividendos.
Filipe, a minha vida será sempre mais dificil do que para os que ganham cinco mil. Se me tirarem 100, vou passar mais dificuldades do que se tirarem 1000 a um que ganha 5000. Já começa aqui a desigualdade. Mas aos mesmo ricos, aos que têm milhões, a esses é que deviam pedir para ajudar na dívida. A minha dificuldade, com o corte salarial que já levei, e mais o corte dos subsídios para o ano, é não ir os habituais 15 de férias para a praia, repartidos com os meus sogros. A dificuldade de uma familia que tem vinte milhões, mesmo que lhes tirassem metade, seria escolher entre passar um mês em Paris, ou passar um mês nas bahamas num resort de luxo. Esses não teriam de ver preços ao cêntimo nos supermercado, é pegar e pôr na cesta. Está a perceber o que quero dizer? Não há coesão nenhuma, nem vai haver. Toda a gente acha natural que tirem aos que têm menos, mas já é um alarido se tirarem aos mais ricos, passa-se por revolucionário. Porquê? Mas nem me posso queixar muito, parece. Se abro o bico, dizem-me que sou rico, em comparação com os miseráveis que ganham metade, pais de familia a ganharem o salário mínimo, para sustentar a família. Eu tenho a MEO em casa, é o nosso luxo, pago trinta e tal euros por mês. Mas há muito ranhoso que diz que não me posso queixar e só ficam satisfeitos se voltar a ter uma televisão a preto e branco com dois canais. Muitos dos que por ai dizem isto, têm muito mais do que eu.
Portanto, a minha solução para a crise é ir buscar o dinheiro a quem o tem, combater a fuga ao fisco, aumentar a tributação às grandes empresas e bancos. Mas alguém aceita isso? Porque é que vamos ter recessão? Porque as familias vão ter menos dinheiro para consumir. Não é para comprar carros de luxo, é para comprar coisas básicas, e manter aberto o comércio e o emprego de quem lá trabalha. Desculpe isto já ir longo, mas desabafar com alguém também consola.
Ora essa , mi casa es su casa.
Vou aproveitar aí uma ou duas coisas para a sequela do post.
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